Tem como sócio um filho do presidente da Assembleia Legislativa de Pernambuco, deputado Álvaro Porto (PSDB), a empresa que fechou um contrato com a Prefeitura do Recife com dispensa de licitação própria. O acordo de compra foi considerado suspeito por uma auditoria do Tribunal de Contas do Estado, mas autorizado pelo conselheiro que é o relator do caso no TCE. 

O parecer técnico apontou o que considerou serem cinco irregularidades. Entre elas, um sobrepreço de R$ 12,5 milhões. Esta cifra representa 64% do valor total do contrato, de R$ 19,5 milhões. 

A escolha pela Enove Engenharia e Energias Renováveis, que tem Álvaro Porto Filho como um dos sócios, foi no âmbito da Secretaria de Educação. O contrato foi firmado no dia 22 de novembro do ano passado. Fred Amâncio era o titular da pasta. Pela empresa, quem assinou o acordo foi o outro sócio, João Carlos de Mendonça. 

A contratação teve como objeto a instalação, em escolas e creches, “de sistema de geração de energia solar fotovoltaica, incluindo a elaboração de projetos, laudos, pareceres, análise de viabilidade econômica e treinamento”.

A unidade padrão de medida utilizada em serviços deste tipo é o kWp (quilowatt-pico), que mede a capacidade máxima de potência de um painel solar fotovoltaico em condições ideais de funcionamento.

De acordo com o trabalho de auditores do controle externo do TCE, a Secretaria de Educação do Recife contratou por um valor muito acima do mercado o kWp (quilowatt-pico). A pasta previu pagar R$ 7,5 mil/kWp.

A auditoria fez pesquisa de preços em sites privados e governamentais, como o painel de preços do governo federal, para comparar valores. O levantamento foi feito em dezembro do ano passado em contratos da administração pública firmados em 2023 e 2024. 

Foram analisados 13 acordos que adotaram o kWp como unidade de serviço. O preço médio praticado foi o de R$ 2.661,11. 

“O valor contratado é quase o triplo do preço médio obtido na consulta de preços e está 182% acima do valor de mercado”, destaca a equipe técnica do TCE, em negrito, na página 12 do relatório preliminar.

Veja o documento na íntegra.

Outra fonte de consulta da auditoria foi o Radar Solfácil. A publicação é trimestral e traça o panorama do mercado para projetos residenciais. No terceiro trimestre de 2024, foi possível encontrar valores três vezes mais em conta do que o contratado pela Secretaria de Educação.

No momento em que a Prefeitura do Recife fechou acordo com a empresa de Álvaro Filho, havia uma tendência de queda nos preços do serviço de instalação de painéis solares fotovoltaicos, registraram os auditores.

A equipe técnica chegou a esta cifra multiplicando o sobrepreço unitário do quilowatt-pico (R$ 4,8 mil) pelo número de kWp contratado (2.600). 

Além do sobrepreço, mais quatro irregularidades 

A auditoria do Tribunal de Contas apontou também a existência do que considerou serem outras quatro irregularidades. São elas: 

  • adesão irregular à ata de registro de preços por não preenchimento dos requisitos de comprovação da vantajosidade e compatibilidade dos preços registrados com valores de mercado.
  • utilização indevida de ata de registro de preços como contrato do tipo “guarda-chuva”.
  • ausência de estudos técnicos preliminares, projeto básico e orçamento.
  • participação do autor do projeto na execução da obra/serviço.

Para a Gerência de Fiscalização de Saneamento, Meio Ambiente e Energia do TCE, a Prefeitura do Recife não conseguiu demonstrar a vantagem da contratação para os cofres públicos. Mas ela – a “vantajosidade” – foi declarada pela Secretaria de Educação no dia 26 de fevereiro de 2024. 

Era mês de Carnaval. No Recife, 18 dias antes, o prefeito João Campos (PSB) – já de cabelo nevado – havia recebido a família Porto no camarote do Marco Zero. Menos afeito às redes sociais, o deputado registrou o momento no Instagram.  

O presidente da Assembleia e o prefeito do Recife também foram fotografados juntos na prévia carnavalesca do Baile Municipal.

Aquele fevereiro de 2024 também foi o mês de reabertura dos trabalhos nas casas legislativas. Na Assembleia, a sessão foi realizada no dia 1º e contou com a presença da governadora Raquel Lyra (à época no PSDB). 

O que deveria ser algo protocolar acabou ficando marcado pelo fato do presidente ter deixado vazar no microfone a declaração de que a governadora havia conversado “merda demais” em seu discurso. Relembre na matéria do G1.

À época, Raquel e Álvaro eram colegas de partido. De lá para cá, a governadora trocou o PSDB pelo PSD e a relação com o presidente da Assembleia foi ficando cada vez mais bélica. De lado a lado. 

Conselheiro descarta alerta de auditoria e libera contrato

Os apontamentos dos auditores do controle externo do TCE não foram suficientes para convencer o relator do caso a expedir medida cautelar que suspendesse qualquer pagamento à empresa. O conselheiro Dirceu Rodolfo acatou a alegação da Enove e Secretaria de Educação. 

“Tenho vezo que expressar o reconhecimento pelo excelente trabalho de nossos auditores, sempre merecedores de prédicas elogiosas. Aqui também o faço, uma vez que a equipe envolvida no caso demonstrou agilidade, considerando o curto tempo disponível para o enfrentamento de questões atinentes a medidas de urgência. Feito o devido registro, tenho de reconhecer que a PCR e a Enove Engenharia estão com razão ao afirmarem que os auditores utilizaram como parâmetro comparativo preços que não se referenciam aos mesmos serviços”.

O trecho acima está na página 15 do despacho do conselheiro relator. Abaixo, a decisão na íntegra.

Veja as principais alegações da PCR

Na decisão, o conselheiro Dirceu Rodolfo deu destaque às alegações apresentadas pela Enove Engenharia e Prefeitura do Recife. A empresa pontuou que os “preços são compatíveis com o mercado e baseados em composições de custo referenciadas em tabelas oficiais, como o Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil”.

A Enove disse também que a auditoria “não considerou adequadamente os elementos de prova e comparou valores de natureza diferente, levando a uma interpretação equivocada de sobrepreço”.

Já a Secretaria de Educação apresentou nota técnica da Secretaria Executiva de Infraestrutura, reproduzida abaixo.

Justificativa da Adesão

A instalação de energia solar é vista como uma melhoria que traz economia, independência da rede de distribuição, responsabilidade social e sustentabilidade.

Vantajosidade e Compatibilidade de Preços

A justificativa e a documentação para comprovação de preços de mercado foram apresentadas em ofício, com pesquisas de preços realizadas com 13 fornecedores e consultas em atas de outros órgãos públicos. A Secretaria alega que a média das cotações justifica a vantajosidade da adesão.

Utilização Indevida de Ata como contrato “guarda-chuva”

A ata não seria um contrato “guarda-chuva”, pois o objeto é bem definido, com requisitos técnicos específicos.

Ausência de Estudo Técnico Preliminar, Projeto Básico e Orçamento

O estudo técnico preliminar consta nos autos do processo e que o levantamento da previsão do quantitativo da adesão foi baseado no histórico das contas de energia elétrica das unidades educacionais.

Participação do Autor do Projeto na Execução da Obra/Serviço

Não haveria a participação do autor do projeto na execução da obra/serviço, pois o termo de referência foi elaborado pelo  consórcio de integração dos municípios do Pajeú (Cimpajeú).

Após o despacho de Dirceu Rodolfo, a prefeitura disse, em nota à imprensa, “que a decisão ratifica a lisura e a transparência com que são conduzidos os processos de contratação pela gestão municipal.”

No TCE, caso tinha como relator primo do empresário

Antes de Dirceu Rodolfo ser designado relator, no Tribunal de Contas era o conselheiro Eduardo Lyra Porto quem tinha o caso em mãos. Ele é primo de Álvaro Porto Filho, sócio da Enove Engenharia. Em janeiro deste ano, ele se afastou da relatoria do caso.

Aqui vale destacar um fato incomum nos Tribunais de Contas Brasil afora: Eduardo Porto passou a ser conselheiro na vaga que era ocupada pelo seu pai, Carlos Porto, irmão do presidente da Assembleia. 

Carlos Porto antecipou em dois anos e meio a aposentadoria, numa estratégia casada para emplacar o filho. Eduardo teve o nome aprovado pela Casa Joaquim Nabuco em maio de 2023. Relembre na matéria do G1.  

A família Porto é influente politicamente em municípios do Agreste pernambucano. O empresário Álvaro Filho era prefeito de Quipapá, até renunciar ao mandato em dezembro de 2023. Alegou motivos pessoais e de saúde. 

O presidente da Assembleia já foi prefeito de Canhotinho, que hoje é administrado por sua esposa Sandra Paes (Republicanos). A família é a maior força política do município há 20 anos. Outro filho do casal é pré-candidato a deputado federal pelo PSDB.

Irmão de presidente da Alepe é investigado pela PF

Enquanto este texto era produzido, outro irmão de Álvaro Porto foi alvo de uma operação da Polícia Federal. Delegado de Polícia Civil aposentado, ex-deputado estadual e ex-vereador de Jaboatão dos Guararapes, Eduardo Porto é suspeito de integrar esquema de fraude em licitações e lavagem de dinheiro. 

A Operação Firenze foi deflagrada pela PF em conjunto com a Controladoria Geral da União. Segundo a CGU, as investigações teriam começado após uma denúncia de que uma empresa terceirizada teria sido contratada de forma irregular no município de Timbaúba. Saiba mais aqui.