Assisti a Apocalipse nos Trópicos no mesmo final de semana em que a governadora Raquel Lyra (PSD) e o prefeito João Campos (PSB) marcaram presença no 43º Congresso de Jovens da Igreja Evangélica Assembleia de Deus, no Geraldão. A alguns quilômetros dali, outro evento – a 3ª edição do Dia do Católico – reuniu um público menor, mas igualmente fiel, no Clube Internacional.

Raquel esteve presente na sexta (25) à abertura do congresso da Assembleia de Deus. João compareceu ao encerramento no domingo (27). Com casa cheia nos três dias, o evento deve acontecer na Arena Pernambuco no próximo ano, ano de eleições gerais.

Em Apocalipse nos Trópicos, o pastor e empresário Silas Malafaia repete que os evangélicos representam 30% da população brasileira. Este número está superestimado por ele. Na verdade, os evangélicos somam 26,9%, segundo o IBGE, e os católicos se mantêm maioria (56,7%). Mas isso pouco importa, porque aqui o assunto é poder, e não percentuais.

O filme de Petra Costa e a agenda do fim de semana da governadora e do prefeito evidenciam: ninguém no Brasil de hoje ganha uma eleição majoritária sem dialogar com a comunidade conservadora e evangélica. Em 2002, Lula publicou a Carta ao Povo Brasileiro, endereçada ao empresariado. Vinte anos depois, assinou a carta aos evangélicos. Para o próximo ano, precisará reeditar o gesto.

Raquel Lyra e João Campos não inauguram a relação de aceno a essa comunidade, por meio de tratativas com as lideranças político-religiosas. Repetem a dinâmica de uma lógica que já está posta.

Para efeito de resgate histórico, o ex-governador Eduardo Campos já esteve no culto do 9º Congresso de Mulheres da Assembleia de Deus.

Em 2010, Eduardo no púlpito da igreja

O ex-governador Paulo Câmara e o ex-prefeito do Recife Geraldo Julio, literalmente, já ajoelharam aos pés do pastor Ailton José Alves.

Natural de Timbaúba, Ailton preside as igrejas em PE

Raquel e João no “beija a mão”

No Geraldão lotado, a governadora e o prefeito apareceram em dias diferentes para o público ao lado do pastor Ailton. Este, sim, onipresente no evento. Na verdade, tanto Raquel quanto João foram lá para o “beija a mão”. Na política, a expressão é usada para designar o gesto por deferência ou autorização.

Natural do município de Timbaúba, região da Mata Norte de Pernambuco, e prestes a completar 72 anos de idade, o pastor Ailton é o presidente das Assembleias de Deus em Pernambuco. Ninguém que quer conquistar um cargo majoritário em 2026 deseja tê-lo como um opositor.

No 2º turno da eleição presidencial de 2022, o pastor Ailton gravou vídeo ao lado de Bolsonaro pedindo voto em nome de “Deus, pátria, família, liberdade e a igreja do Senhor Jesus”.

Comunidade evangélica: base unida ao topo pelo senso de pertencimento

A base da pirâmide populacional da comunidade evangélica é formada por mulheres, em sua maioria pretas, pardas ou pobres. Essa base tem seu perfil socioeconômico bem diferente do topo dessa pirâmide, quase que exclusivamente composto por poucos homens endinheirados, “donos” de igreja. 

Abaixo, trecho de uma fala do paraibano e pastor Augustus Nicodemus explicando como surgiram algumas das lideranças que hoje têm o rosto popularizado nos programas de televisão.

Arrisco a dizer que a agenda conservadora em torno de determinados temas e o medo de que a família possa estar ameaçada são insuficientes para entender o nível de coesão que a comunidade evangélica tem na hora de, por exemplo, assumir que questões religiosas determinam, sim, o voto na urna.

Pesquisa da fundação do PT detectou fenômeno lá em 2016

Após a derrota do então prefeito de São Paulo Fernando Haddad, que viu o “outsider” João Doria (PSDB) ser eleito logo no primeiro turno, a Fundação Perseu Abramo, vinculada ao Partido dos Trabalhadores, fez um levantamento importante para entender como pensavam pessoas beneficiárias de programas do governo federal que tinham renda de até dois salários mínimos.

Intitulado “Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo”, o trabalho apontou questões interessantes. Destaco aqui dois pontos:

– as pessoas ouvidas não compreendiam o mundo por meio da “luta de classes” entre classe trabalhadora e burguesia. Na verdade, muitas vezes viam no empresariado um parceiro. O inimigo mesmo, para essas pessoas, era o Estado.

– a igreja entrava na vida dessas pessoas pelo caráter organizacional. É a porta aberta, a cadeira para sentar, o pastor para profetizar um futuro de glória. É a possibilidade de viver em comunidade. O teológico vinha em seguida e se tornava tão importante quanto.

O que as igrejas neopentecostais fazem hoje no Brasil pode ser entendido como o trabalho de base que a Igreja Católica desempenhou décadas atrás, com as chamadas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que formaram um dos pilares da criação do Partido do Trabalhadores.

De lá para cá, o Brasil mudou um bocado. No próximo ano, além das 513 cadeiras da Câmara dos Deputados, 2/3 das 81 cadeiras do Senado estarão em disputa. Serão 54 novo/as senadore/as. A fotografia do Congresso Nacional que sairá das urnas em 2026 será crucial para entendermos o país em que viveremos pelos próximos anos.